Em 1º de maio de 1919 a Ford iniciava sua história no Brasil como montadora. Era no centro da cidade de São Paulo a unidade onde era montado o “Ford T“, que no Brasil ganhou o apelido de “Ford Bigode”. As peças vinham todas dos Estados Unidos e eram montadas em um galpão na Rua Florêncio de Abreu. A ideia do fundador, Henry Ford, era fabricar o carro mais simples possível, para consumo em massa. Isso está descrito no site da própria Ford, que anunciou sua saída do Brasil como fabricante de veículos.
O primeiro veículo da marca, no entanto, chegou ao Brasil 15 anos antes. Desde 1904 a Ford trazia seus veículos completamente montados dos Estados Unidos e eles desembarcavam no Porto de Santos. A montadora em São Paulo surgiu justamente quando a empresa percebeu que havia uma grande demanda pelo novo produto no país.
Depois do galpão de montagem na Rua Florêncio de Abreu a Ford migrou para um galpão maior na Praça da República e em 1921 inaugurou uma linha de montagem na Rua Sólon, no bairro do Bom Retiro.
O Ford Bigode montado no Brasil foi vendido de 1919 a 1927 e também tinha uma versão utilitária chamada “TT”, quando a empresa desenvolveu o modelo A, mais moderno, com motor de 4 cilindros desenvolvendo 40 cavalos. O “Ford A” ficou conhecido no Brasil como “Fordinho” e ocupou por anos o posto de carro mais vendido do país.
Nos próximos anos a Ford importou modelos ingleses para o Brasil, como o Ford Anglia, o Modelo Y e também o Ford Eifel, feito na Alemanha, e o caminhão Ford V8, com peças importadas dos Estados Unidos.
Dos anos 1930 até 1946 há uma grande desaceleração da indústria automotiva devido a depressão econômica nos Estados Unidos e a Segunda Guerra Mundial. Havia escassez de combustíveis e os esforços das fábricas estavam em fortalecer a indústria militar.
A retomada da produção nacional e o início da história da Ford como grande indústria no Brasil se dá de fato em 1953, quando a empresa se instalou no Bairro do Ipiranga, fabricando 125 veículos por dia e contratando 2.500 funcionários. O foco eram utilitários, como a linha F, que até hoje é a linha mais vendida da Ford no mundo. Entre os automóveis a empresa comercializava o Ford 1949, o primeiro veículo desenvolvido na época pós guerra.
Ford + Willys
Para contar a história da Ford no Brasil nesse novo período, após 1950, é preciso contar a história de outra marca americana que ergueu sua primeira fábrica por aqui em 1952. A Willys-Overland chegou em São Bernardo do Campo e em seguida comprou uma empresa de fundição de ferro em Taubaté, no interior de São Paulo. Nestas fábricas a Willys produzia o Jeep Willys (o jipe clássico usado na Segunda Guerra Mundial), o Aero Willys, o Gordini, o Itamaraty, a Pick-up e a Rural. A empresa tinha um acordo com a Renault que permitia também comercializar no Brasil versões do Dauphine e do Alpine, que aqui ficou conhecido como Interlagos.
Ford e Willys foram parceiras nos Estados Unidos no desenvolvimento de veículos utilizados na Segunda Guerra Mundial, como o próprio Jipe Willys. Essa proximidade possibilitou a compra mundial da Willys pela Ford em 1967, quando passaram a ser uma empresa só e a fábrica de São Bernardo do Campo passou a ser o QG da Ford Brasil.
Nessa nova fase a empresa voltou a ter um carro de destaque, o Ford Galaxie 500 com motor V8, que estreou em 1967. O Ford Corcel chegou dois anos depois e era um projeto da Willys que foi retrabalhado pela área de engenharia da Ford.
Em 1971 a Ford Brasil tinha em seu portfólio o Corcel, o Galaxie 500, o Aero-Willys e o Itamaraty. O Ford Maverick, fabricado no Brasil, se juntou à linha em 1973 ao mesmo tempo que Aero-Willys e Itamaraty se despediam.
As décadas de 1970 e 1980 foram intensas para a Ford Brasil. Em 1978 a Ford lançou o Corcel II e no ano seguinte chegou a picape F-1000. O Maverick brasileiro saiu de linha após 108 mil unidades produzidas. Em 1980 chega a picape Ford Pampa e em 81 chega o Del Rey.
1983
O ano de 1983 marca uma virada na história da Ford. A empresa aposentava sua linha de veículos com motores V8 e deixa de fabricar o Galaxie, com sua versão Landau. Era, na verdade, uma readequação da empresa no mercado que começava a pedir por veículos menores e mais econômicos.
Com a chegada de modelos concorrentes na América Latina, como veículos menores da Peugeot na Argentina, a Ford busca em sua filial na Alemanha uma solução rápida para este mercado: traz o Escort para o Brasil e o Taunus para a Argentina.
O Escort começou a ser fabricado em 1983 na fábrica de São Bernardo do Campo e até era exportado para a Europa, aproveitando a desvalorização cambial do mais absurdo período econômico brasileiro. Na linha de caminhões a Ford apresenta em 1985 a linha Ford Cargo, que seguiria em produção até 2019.
Em 1986 a linha da Ford tinha o Escort como carro chefe, seguido de Corcel II, Belina, Pampa, Del Rey e F-1000. A partir do ano seguinte a Ford passa a trabalhar em conjunto com a Volkswagen na América Latina, o que originou a Autolatina – que durou até 1995 – com modelos curiosos:
O Escort e o Del Rey passam a ter motor Volkswagen 1.8. O Escort ganha uma versão sedã chamado Ford Verona, que era próximo do que foi o Ford Orion, na Europa. O Volkswagen Santana deu origem ao Ford Versailles.
Mudança do mercado brasileiro
Os anos de 1991 a 1993 são muito importantes para a indústria nacional. Primeiro com a decisão do então presidente Fernando Collor em abrir o mercado para veículos importados. Isso fez com que as montadoras nacionais, na época representadas pelas quatro grandes (Ford, Fiat, Chevrolet e Volkswagen), saíssem da zona de conforto e preparassem a vinda de novos produtos para o mercado nacional, como o Taurus e o Mondeo, da Ford.
Em 1993 o presidente Itamar Franco reduziu o imposto para carros de até 1000 cilindradas, o que levou as montadoras a lançarem veículos mais simples voltados para o mercado popular: a Fiat teve grande sucesso com o Uno, seguida da Volkswagen com o Gol 1000, seguida da Ford com o Escort Hobby e por último a Chevrolet com o mal sucedido Chevette Júnior.
A Chevrolet virou o jogo em 1994, quando trouxe o Corsa da Europa. A Volkswagen seguiu com o Gol, mas com uma nova geração – o Gol bolinha, a Fiat lançou o bem sucedido projeto Palio e a Ford trouxe da Europa o Fiesta. A Ford Ranger, um dos sucessos da marca que segue em produção, foi lançada em 1995.
Essa nova fase histórica do automóvel no Brasil mexeu com o mercado. Volks e Ford decidiram em 1996 encerrar a sociedade na Autolatina. Não deu certo, a Ford só perdeu mercado nos quase dez anos da parceria (saiu de 20% para 11%) e teve que se acostumar sobrevivendo em um novo patamar de vendas, olhando de longe as três concorrentes tradicionais na disputa pela liderança das vendas.
Em 1997 chegam ao mercado a picape Ford Courier e o Ford Ka, fabricado no Brasil com o mesmo visual que ele tinha na Europa. No ano 2000 a Ford traz ao Brasil o Focus e passa a ter uma linha de carros globais nas concessionárias: Fiesta, Ka, Courier, F-250, F-350, Focus e Ranger.
A empresa expandiu suas operações no Brasil e 2001, quando inaugurou a fábrica de Camaçari, na Bahia. Essa expansão deu novo fôlego pra montadora, que se reacertou ao lançar uma nova versão do Fiesta em 2002 e o que seria um novo nicho para o mercado nacional: o compacto SUV Ecosport.
O Ecosport talvez seja o produto que mais representa a história da Ford nos últimos anos no país: ele deu o pontapé inicial da febre dos SUVs e virou um sucesso de vendas. Quando os concorrentes se mexeram e lançaram seus produtos, o Ecosport perdeu o protagonismo e ‘se escondeu’. Nem de longe a Ford conseguiu fazer do Ecosport o que a Fiat fez com a Toro, outro veículo que não tinha semelhante no mercado brasileiro.
A fábrica de Camaçari, aliás, deu novo sentido a organização da Ford no Brasil. São Bernardo recebeu a linha de caminhões, vinda da extinta unidade do Ipiranga, na capital paulista. Em 2015, a planta comemorou o marco de 1 milhão de unidades produzidas.
Em 2006 a Ford trouxe o Fusion do México, carro que se tornou referência como sedã grande de luxo. O Fusion parou de ser fabricado em 2020. Em 2007 a Ford comprou a brasileira Troller, no Ceará, e manteve a marca da fabricante de jipes separada de seu portfólio.
Ka, Ecosport e os sinais da partida
O Ka ganhou uma reestilização em 2007 e uma nova geração em 2014. O mesmo aconteceu com a Ecosport, um projeto da Ford Brasil. Juntos, Ford Ka e Ford Ecosport seguiram até o final anunciado da produção da empresa no Brasil.
O anúncio da despedida foi totalmente inesperado no mercado devido a toda a história que contamos até aqui. Ninguém esperava que uma empresa com 100 anos de história simplesmente se despedisse para voltar a ser uma importadora de veículos, como era entre 1904 e 1919.
Tal força da Ford no mercado brasileiro fez com que a imprensa e os conhecedores do mercado não vissem os sinais claros de retirada que estavam sendo apresentados:
Fiesta e Focus foram retirados de linha em 2019. Na época se afirmou que o Focus não era rentável para a nova política da empresa e o Fiesta compartilhava a clientela do Ford Ka. Seria então retirado de mercado para que o Ka recebesse evoluções de projeto, o que nunca aconteceu.
– A fábrica de São Bernardo do Campo, a mais importante da história da Ford no Brasil foi vendida em 2020.
– A empresa anunciou investimento na América Latina no ano passado e o Brasil sequer foi mencionado. A Argentina receberá a rodada de investimentos e produzirá a nova Ford Ranger.
– A Ford Transit, veículo que foi retirado de mercado no Brasil em 2014 foi anunciada para uma linha 2022. No entanto, o veículo será fabricado na China e montado no Uruguai utilizando uma empresa tercerizada.
– O Ecosport carece de uma atualização visual e tecnológica e o único sinal que a Ford fez neste sentido é revelar que o carro deve se tornar um produto asiático exportado para outros mercados, como hoje é o Ford Territory. Esses sinais apontam que o novo Ecosport será fabricado na Índia ou na China. Especulou-se que esta nova versão seria feita também em Camaçari, mas a Ford nunca confirmou.
Como a Ford continuará no Brasil?
Enfim, o anúncio da partida da Ford como fabricante no Brasil marca a mudança da marca para um modelo semelhante como a Kia opera hoje no país: importa todos os veículos e dá preferência para produto de alto valor agregado (até mesmo porque o Real desvalorizado não permitiria um veículo popular importado).
É uma mudança radical, com exceção da Ranger, produzida na Argentina e portanto beneficiária das regras do Mercosul, os demais veículos sofrerão com cotas e regras de importação e de adaptação ao mercado nacional. A nova Ford não prioriza o popular, o que a distancia dos ideais de seu fundador.