Um processo com quase 4 mil páginas, ao qual o Turboway teve acesso na íntegra, revela, entre outras coisas, detalhes do histórico do Voyage da “Mulher da Casa Abandonada”, podcast da Folha de São Paulo que conta a história de Margarida Bonetti, uma fugitiva da justiça americana há mais de 20 anos por escravizar sua empregada doméstica brasileira. Conseguimos descobrir o ano de fabricação, de quem o pai de Margarida o comprou, por quanto ele foi avaliado já depois de abandonado, e também detalhes de uma relação familiar muito conturbada.
O inventário de Geraldo Vicente de Azevedo, o pai de Margarida, morto em 1998 aos 91 anos, é extenso, afinal ele possuía muitos bens, a maioria herdada do pai, o Barão de Bocaina, que recebeu o título de nobreza das mãos de Dom Pedro II. São casas, apartamentos, terrenos, salas comerciais e, curiosamente, apenas um carro. O mesmo carro que há mais de 20 anos jaz na acanhada garagem da enorme casa de 300 metros quadrados em Higienópolis, região central de São Paulo: um Voyage Bege de placas amarelas, revelada em fotos pelo portal UOL.
Conforme é dito no podcast, Margarida Bonetti recentemente pensou em colocar o Voyage em circulação, o que foi prontamente desencorajado pelo zelador de um prédio vizinho. Foi talvez o último ato do carro – ato este que nem chegou a sair do papel. O podcast não focou muito no veículo, por isso tivemos que dar nosso jeito de descobrir detalhes.
Documento do Voyage da ‘Mulher da Casa Abandonada’
Percorrendo dezenas e dezenas de páginas do inventário, aberto ainda em 1998, mas que se arrasta até hoje, encontramos a primeira informação sobre o Voyage bege. Uma cópia do CRV – Certificado de Registro de Veículo. Batemos o olho diretamente na data de expedição: 23/10/1989.
Outra informação relevante: Geraldo Vicente adquiriu o modelo diretamente de uma concessionária. Após a transação, o carro recebeu uma nova combinação de placas – as mesmas amarelas que o acompanham na garagem-sepultura. Descendo mais o olho pelo documento, descobrimos que ele é 1988, modelo 1989, e que é movido a álcool – ou pelo menos era.
Procuramos mais detalhes do Voyage e o encontramos sendo citado na lista inicial de bens do médico. O texto literal é este:
Um automóvel para passageiros, nacional, modelo Voyage
CL, marca Volkswagen, ano 1988, placa: YG8879, estando
desativado desde 1992, quando o falecido parou de dirigir o
mesmo, deixando sem movimentar o veículo; seu desejo do
Dr. Geraldo era deixar o automóvel na garagem intocado, e
lá ficou até os dias de hoje.
Ou seja, é possível que o Voyage esteja parado há 30 anos, embora a informação de que ele está desativado desde 1992 não bata com o que foi dito em uma entrevista no podcast. O porteiro de um prédio vizinho, que trabalha no mesmo local há 38 anos, disse se lembrar de ver o pai de Margarida dirigindo o veículo até perto de morrer, em 1998.
Vasculhamos novas páginas do processo, originalmente feito todo em papel, e só mais recentemente digitalizado. Em um documento já de 2008, nos deparamos com um adjetivo nada honroso mas preciso: “veículo em péssimas condições”. No mesmo parágrafo, uma estimativa de valor: apenas R$ 2.000, muito menos do que valem hoje Voyages do mesmo ano à venda na internet. Em uma pesquisa no Webmotors, verificamos modelos sendo vendidos por R$ 15.800 e até por R$ 41.800.
Também encontramos algumas fotos muito ruins de reportagens sobre o crime de Margarida. Uma delas, digitalizada sem muito carinho, chamou a atenção. Seria aquele o Voyage, ainda saudável, estacionado na porta da mansão numa tarde qualquer?
Pegamos a data da reportagem, publicada no ano 2000, e fomos atrás do original no site de O Globo. Felizmente, o jornal mantém de forma pública o seu acervo. Um livre acesso à memória – e, neste caso, um livre acesso ao nosso interesse naquele Voyage CL 88/89 a álcool.
Encontramos. A foto colorida mostra um carro bege estacionado em frente à mansão ainda inteira. Tudo leva a crer que seja um Voyage, mas não dá para cravar que é o modelo que procuramos, pois a foto é muito pequena. O Turboway aposta as fichas que sim, mesmo sem ver a placa.
O “Fusca Volkswagen”
Em outro momento do processo, já em 2011, a advogada da filha do meio do falecido Geraldo – e irmã da caçula Margarida Bonetti – se refere de forma curiosa aos carros em geral, enquanto argumenta contra a irmã mais velha.
Ela tenta desdizer a primogênita, que sustenta nos autos que o pai era rico. “Os carros dos pais delas [as colegas de escola] eram novos, mas em geral o carro de Dr. Geraldo não era, a menos quando ele comprava 0km, mas era “o fusca” Volkswagen, que não era carro de pessoas ricas”, disse no processo, se referindo a todos os carros populares da VW como “fuscas”. De fato, Geraldo tinha alguma predileção por modelos simples da montadora alemã. Antes do Voyage, ele circulava por Higienópolis com uma Brasília que não passava da primeira marcha, conforme relatado no podcast.
Nas 3.708 páginas do inventário há relatos pesados de desentendimentos entre as herdeiras com o destino dos bens, que vão ruindo com o tempo. Não encontramos, no entanto, nenhuma disputa pelo carro. O Voyage parece esquecido entre as páginas envelhecidas de um extenso processo, mas também em uma infausta garagem, que desperdiça um dos metros quadrados mais caros da capital paulista.