Há 32 anos o Brasil experimentava uma mudança radical em seu mercado automobilístico: o então presidente Fernando Collor abria o mercado para a importação de veículos. A mudança causou polêmica, deixou importadores ricos, causou crise para fabricantes nacionais, mas também mudou para sempre um mercado acomodado na época.
O Brasil importa carros desde o século 19. Alberto Santos Dumont foi pioneiro e trouxe da França em 1891 um Peugeot Type3. No início do século 20 a Ford e a GM iniciaram a montagem de veículos por aqui, mas ainda assim eram utilitários voltados para entregas e o trabalho no campo.
Acabaram com o “status”
Quem queria um carro para rodar nas ruas de São Paulo durante boa parte do século 20 tinha a opção de importar e “pagar de rico” por aí. Assim fizeram os magnatas da época em que carro era para poucos, como Ermelino Matarazzo e depois Assis Chateubriand.
O luxo para quem podia comprar durou até a década de 1970, durante a ditadura militar, quando o governo decidiu proibir as importações como um estímulo para fortalecer a indústria nacional. Na verdade atendia a um lobby das montadoras que já estavam instaladas e não queriam concorrência em um mercado com potencial bilionário.
Em 1976, oficialmente, o Brasil parou de importar veículos e a partir dali só entrariam carros importados com autorização especial do governo. As três montadoras que aqui já existiam (Chevrolet, Ford e Volkswagen) ganharam a companhia da Fiat, no mesmo ano, em Betim. Por outro lado, o custo disso também foi gritante: passamos praticamente 15 anos parados no tempo com a indústria lançando modelos muito simples, sem nenhuma inovação.
No Brasil só tem carroça
No final da década de 80 as marcas que estavam aqui duelavam com o VW Gol, o Fiat 147, o Chevrolet Chevette e o Ford Escort. Eram carros derivados de projetos dos anos 70 e que pecavam no conforto, motores e na falta de acessórios. Enquanto isso a vizinha Argentina já tinha modelos (importados) mais sofisticados. Europa e Estados Unidos então…
Collor prometeu em sua campanha que abriria o mercado para os importados, não apenas os automóveis. A frase célebre que marcou isso foi “no Brasil só tem carroça”.
No dia 9 de maio de 1990 estava autorizada a importação de modelos no Brasil, fato que gerou protestos sob o argumento de que a indústria nacional seria dizimada. Isso não aconteceu, porém nem todos sobreviveram.
As primeiras marcas a se beneficiarem com a mudança foram BMW e Fiat. Segundo registros de jornais da época, já em 1990 começaram a chegar os primeiros BMW importados ao Brasil.
A Fiat veio em seguida, mas com carros de sua marca de luxo, a Alfa Romeo, que trouxe 100 unidades do sedã Alfa Romeo 164. Também é da Fiat o maior sucesso de importação da década de 90: o Fiat Tipo, que chegou a competir no topo de vendas com carros nacionais.
La garantia soy yo
Surgiram também nesta época os grupos especializados em importação de carros. Eram grupos empresariais que resolveram importar veículos por conta própria. Assim chegaram BMW, Renault e Peugeot.
Isso gerou um problema que acabou estigmatizando algumas marcas. Na maioria das vezes os importadores apenas traziam o carro ao país e não ofereciam assistência ou a faziam de maneira muito limitada. Com os carros franceses isso foi bem traumático, já que a assistência técnica era terceirizada, a mecânica complicada e nem sempre era fácil arrumar peças de Renault e Peugeot por aí.
Também existiram importadores independentes de marcas que já estavam no Brasil e isso causou algumas confusões.
Por exemplo: a Ford ainda não vendia no Brasil a Ranger, mas outros grupos empresariais importavam o carro dos Estados Unidos de forma independente e vendiam no país. Quando um carro destes dava problema o consumidor procurava a Ford do Brasil e na maioria das vezes a resposta é que a marca no Brasil nada tinha a ver com o produto.
Mas entre os importadores também houve casos de muito sucesso. A Audi chegou ao Brasil pelas mãos de Ayrton Senna no final de 1993, ganhou no país um status de luxo maior do que tinha no exterior e foi expandindo a operação até se estabelecer com fábrica por aqui.
Também a Jeep, que até 1990 era conhecida por seus veículos rústicos ganhou status de luxo com o Cherokee, que era muito usado nos primórdios da blindagem. A Jeep, porém, tinha importação oficial da marca.
O aperto dos asiáticos
Enquanto os importados eram carros de luxo a preocupação ainda era menor, já que na época a inflação explodia e o salário mínimo era ainda mais terrível do que é hoje. Com dois anos de mercado aberto começaram a chegar produtos mais populares importados de países asiáticos, que seriam as “pedras no sapato” da indústria nacional.
A Asia Motors, que depois foi incorporada à Kia na Coréia do Sul, trouxe a Towner e a Besta, vans que desbancaram o reinado da VW Kombi. A russa Lada trouxe modelos como Niva, que pretendia bater de frente com o pré-histórico Toyota Bandeirante. O grande trunfo da Lada em sua linha foi o preço, que batia de frente com carros populares da época.
As quatro marcas que já tinham fábrica no Brasil começaram a perder terreno. Mudanças dos anos 90: primeiro essas marcas descobriram que o brasileiro mesmo tendo uma economia em frangalhos estava disposto a pagar caro por um carro com algumas regalias. Segundo, que precisavam mais do que um Chevette e um Del Rey para degladiar com coreanos, japoneses e europeus. Começaram então a modernizar suas linhas de produção.
O fruto disso foram os projetos do novo Gol (bolinha) e o Corsa em 1994 e outros como o Ford Fiesta e o Fiat Palio que vieram depois. Não era ainda algo que pode ser chamado de sofisticado, mas eram competitivos no preço e estavam alguns passos a frente dos projetos barulhentos dos anos 70.
Quem ficou pelo caminho
Ao mesmo tempo que o ano de 1990 impulsionou uma virada no mercado automotivo nacional, deixou também os “feridos”. A reviravolta deixou de fora quem não tinha margem para fazer novos investimentos ou quem arriscou alto demais. Esse foi um dos vários motivos que sepultaram a Gurgel e outras pequenas fabricantes e preparadoras nacionais.
Os próprios importadores foram aos poucos ficando pelo caminho. Uns porque apostaram em produtos que não pegaram por aqui, como a japonesa Mazda. Outros foram freados pela alta exagerada do dólar no final da década de 90. Isso provocou um novo movimento, com marcas importadoras gostando do mercado e decidindo fabricar aqui: caso de Honda e Peugeot. Assim os importados voltavam para o patamar de quem poderia dispor de muito dinheiro.
Já o governo do ex-presidente Fernando Collor deixou muitas marcas negativas, como o inesquecível (para quem viveu) confisco da poupança. Com alta rejeição da população ele sofreu um impeachment em 1992.
Ironicamente foi um veículo nacional que contribuiu para sua queda. Collor foi acusado de uso de contas fantasmas para desvio de dinheiro. Uma das provas apresentadas foi a compra de um Fiat Elba, carro nacional, pago com dinheiro de uma dessas contas. Mais tarde o ex-presidente foi absolvido por essas acusações por falta de provas, segundo a justiça.